“A dimensão do ato de ler é que permite, verdadeiramente, saber das ressignificações textuais realizadas, único item a fazer diferença para o indivíduo e a sociedade”. Confira o artigo de Nilma Lacerda, nossa convidada para a Roda de Conversa Digital, que acontece dia 02 de julho no Facebook da Campanha Eu Quero Minha Biblioteca. Vem com a gente!
Começar ainda hoje: letramento na educação infantil, formação do leitor e biblioteca
Nilma Lacerda (Professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Manual de tapeçaria, Pena de ganso, Sortes de Villamor, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à beira do rio, dentre outras obras. Colunista da Revista Pessoa de Literatura Lusófona: www.revistapessoa.com)
Na visão do historiador israelense Yuval Noah Harari, a espécie Sapiens do gênero Homo alcançou posição dominante sobre os demais animais por ter inventado a linguagem e ser capaz de criar ficções. A visão que traz é mais amarga que temperada, mas, realista, permite ainda à espécie criar alternativas que equilibrem o pendor à destruição e à injustiça que a caracteriza. Em contraposição, o saber e a solidariedade são dois de seus melhores dons. Na expectativa de que tais dons sejam partilhados por todos, a humanidade busca, de forma análoga ao princípio da hereditariedade biológica, transmiti-los por herança. Se a herança material se estabelece por via consanguínea, no momento em que o nomadismo é abandonado pela espécie e o acúmulo de bens é gerado, os bens simbólicos, isto é, os dons, requerem outra forma de transmissão. Na impossibilidade de serem contidos, contados, delimitados, proclamam sua lógica não material e defendem que todas as pessoas sejam chamadas a tomarem a sua cota-parte.
A escrita, uma das significativas consequências do abandono da vida nômade, é um dos bens privilegiados da espécie, cuja posse deve estender-se a todas as pessoas. Na medida em que a escrita representa poder, tal processo não é tranquilo, nem se dá de uma única vez, caracterizando-se por contínuos movimentos de apropriação, dos quais a viagem é um grande provocador. Comerciantes e navegantes, os fenícios inventaram o alfabeto, o que é considerado por muitos como o princípio da democratização da escrita e, por extensão, do compartilhar do saber assim armazenado. No entanto, ainda por muitos séculos será pequeno o número dos que poderão usar essa forma de registro, experimentando seus benefícios. É por volta do século XV que, em meio a uma série de transformações históricas e sociais, a escrita impõe-se à humanidade como forma privilegiada de comunicação. Escusado dizer do bem e do mal presente em tal situação, daquilo que se inclui e daquilo que se exclui a partir da força adquirida pela letra. Em sua aula magna no Colégio de França, o historiador Roger Chartier levanta aspectos essenciais das conquistas proporcionadas pela escrita, e expõe o quanto esse poder serve igualmente a marcar os que não o possuem, os “sem documentos”, ou literalmente “sem papéis escritos”, que não cabem nas repúblicas dos portadores de papéis, essa identidade timbrada pela escrita.
Alcançar o domínio do código escrito, de forma a nos fazermos herdeiros dos bens que transmitem – informações de todo o tipo, conhecimento de legislação, relações com as divindades, fruição da beleza de textos literários –, passa a se inscrever como um dos itens capitais nos projetos da humanidade, ponto vital da filosofia iluminista. A Revolução Francesa traz em seu bojo o direito à alfabetização universal, mas, quando tal se processa, sabe-se que essa alfabetização tem por pauta uma inclusão esquiva, na medida em que serão diferentes os graus pelos quais será processada, ao longo de quase dois séculos. Uma alfabetização esquiva, furtando-se a oferecer a todas as pessoas, igualmente, os recursos para transitar com segurança pela cultura escrita gera o analfabetismo funcional e alfabetização funcional, processos que começam a ser discutidos nas últimas décadas do século XX. Um analfabeto funcional (2) pode ser caracterizado como o indivíduo que domina o código, reconhece letras, forma sílabas e lê palavras, mas não compreende o texto que decifra: “[…] porque (sic) não conseguiria […] adivinhar a página aberta diante dos […] olhos? Não distinguia as letras? Não sabia reuni-las e formar palavras?” – pergunta a jovem Emília ao primo Graciliano, que pede auxílio a ela para continuar o trabalho que o pai começara com a mediação do livro de ficção (3). O menino responde que sim, conhece letras e sílabas, mas sente-se incapaz para a tarefa da leitura. No entanto, continua a prima, se fizer como os astrônomos e tomar as letras na página como estrelas que estão no céu, sabendo dar a cada uma o seu lugar, poderá ler o livro sozinho. O garoto duvida, e não tem outro jeito. Quer ler a história que trouxe a ele uma experiência inédita: sentir-se como aqueles que sofrem e são perseguidos, na noite escura e tempestuosa, tal como pôde reconhecer, após penoso e gratificante trabalho, ao final da leitura do romance que o pai pôs nas mãos dele.
Sem livro nas mãos, mas recolhendo frases da Rádio Relógio que repete de forma mecânica, a personagem Macabéa, que Clarice Lispector nos dá em A hora da estrela, encarna o indivíduo funcionalmente alfabetizado, que adentra a cultura letrada para alcançar a devida eficácia nas tarefas inerentes ao modo de vida urbano, no final do século XX: “[…] nada argumentou em seu próprio favor quando o chefe da firma de representante de roldanas avisou-lhe com brutalidade […] que só ia manter no emprego Glória, sua colega, porque quanto a ela, errava demais na datilografia, além de sujar invariavelmente o papel.” (4)
A reorientação dessas visões funcionais da alfabetização virá com Paulo Freire, em sua perspectiva crítica e humanista, “[…] tomando-a (a alfabetização) como instrumento de conscientização, emancipação e socialização humana”(5) , o que equivale a considerá-la um bem simbólico, à disposição da espécie. Qual o quinhão dessa herança oferecido a uma pessoa que apenas saber ler e escrever um bilhete simples, considerada pela ótica do IBGE “uma pessoa alfabetizada”? (6)
Os dados do Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) trazidos como base a estas discussões apresentam, no quadro referente a Maior influência / incentivo na disposição para a leitura, por grupos de alfabetismo, a informação, significativa em termos numéricos nos vários itens apontados, de que ninguém influenciou a pessoa, alfabetizada ou não, a aventurar-se no trabalho da leitura. Para o alfabetizado, tal informação não procede. Ninguém aprende a ler sozinho, ninguém mobiliza-se solitariamente nesse campo, como bem evidencia o historiador Jean Hébrard em estudo clássico: “O autodidatismo exemplar. Como Valentin Jamerey-Duval aprendeu a ler” (7). Lemos em rede, em processo que não se realiza sem a intervenção de pessoas alfabetizadas, como no caso de Jamerey-Duval, que, antes de abandonar a aldeia miserável e assolada pela peste em que vivia, recebeu do tio um livro e rudimentos de leitura. Em seguida, encontra abrigo em um mosteiro, onde lê com os monges, continuando seu caminho, em que, aqui e ali, há pontos de sustentação da rede de leitura e escrita.
Os mesmos dados, em outro quadro, não apontam, entre as finalidades de leitura determinadas pelas pessoas, nenhuma que caracterize a compreensão da condição do humano, tal como Graciliano Ramos expressou em Infância, ou Jean-Paul Sartre, em As palavras: “[…] faço e farei livros; são necessários; sempre servem, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, ela não justifica. Mas é um produto do homem: ele se projeta, se reconhece nela; só este espelho crítico lhe oferece a própria imagem” (8), ou como a escritora portuguesa Teolinda Gersão, na pequena obra-prima que é Os Anjos: “A história ia ficar comigo, mesmo que ele tivesse arrancado as páginas. A história do instante em que a vida de alguém se transformava.” (9)
Continuando a refletir sobre os dados obtidos, vemos que funcionalidades e distração marcam as apropriações de leitores e leitoras quanto à leitura, ressaltando-se os 42% de leitores voltados aos livros religiosos, isto é, dogmáticos, e os 19% dos alfabetizados que têm a literatura como interesse de leitura, conceito que sempre prefiro a hábito, para falar de leitura. (10) Essas opções marcam posições e representatividades do ato de ler no Brasil, que tendem a deixar de fora a possibilidade de especulações, ou seja, estudar com atenção, pesquisar, refletir, a fim de poder “[…] descobrir como atuam em nós as formas de dominação do corpo escrito pela lei de outro” (11), na perspectiva levantada por João Adolfo Hansen, para quem determinar como as pessoas leem será mais importante de saber o que lêem, pois essa dimensão do ato de ler é que permite, verdadeiramente, saber das ressignificações textuais realizadas, único item a fazer diferença para o indivíduo e a sociedade. Mas chegar a esses dados significa outra espécie de pesquisa, como a que possa explicitar as razões do relevo da figura feminina, basicamente a mãe, como fator de influência para a decisão de uma pessoa tornar-se leitora para além do funcional.
Há cerca de sessenta anos, o termo alfabetização bastava para enunciar um processo de domínio do código escrito, com plena competência, o que devia-se antes às condições socioeconômicas dos alunos, vivendo em meio por onde circulavam impressos e com demanda de produção escrita para interação social. Na modificação desse quadro, com o ingresso na escola de camadas populares de pais analfabetos, alfabetizar posta-se aquém das práticas capazes de garantir efetivo uso da escrita em circunstâncias variadas. Impõe-se o conceito de letramento, vindo do inglês literacy, palavra que significa “o entendimento e a informação obtidos pela educação”. (12)
Sem irmos a Magda Soares, autora dos primeiros estudos sobre letramento no Brasil, poderíamos observar o conceito em pleno vigor no filme de Bertrand Tavernier, Quando tudo começa, de 1999. (13) Daniel Lefebvre é um professor de educação infantil no norte da França, em comunidade marcada pelo desemprego e recusa do Estado em atender aos crescentes problemas sociais. Dedicado e competente, repreende os pais de Joel por não levá-lo à escola com regularidade, pois isso vai prejudicá-lo, mais tarde, na alfabetização. Lefebvre afirma, categórico: “Eu ensino a ler e a escrever”. Mas o espectador não vê as crianças fazendo exercícios de escrita ou de leitura; assiste a jogos de linguagem, a cantigas com gestual, a pequenas narrativas ouvidas e recontadas pelas crianças, ao manuseio de livros. Como vejo na biblioteca Flor de Papel da Creche da Universidade Federal Fluminense. As crianças, analfabetas ainda, usufruem da cultura escrita ouvindo histórias, recontando-as, escolhendo livros, imitando cenas de leitura com perfeição, como assisti mais de uma vez.
A universidade entende ser sua tarefa criar a consciência do direito à herança da cultura letrada e começa a ocupar-se disso desde as idades da infância. As crianças da creche que passam ao Colégio Universitário Geraldo Reis têm na biblioteca Monteiro Lobato a continuidade dessa prática, e, tal como venho observando com Felipe, é visível a relação íntima que mantêm com o espaço, diferente de crianças que vieram de outros estabelecimentos. Felipe, em processo de alfabetização, já é um leitor, já sabe o que procura nas páginas que pede a outros para ler para ele. Vários outros alunos, alunas, mobilizam-se para isso, ouvindo as leituras literárias, falando sobre elas, perguntando sobre a continuação da atividade, efetuando empréstimos.
O título do filme de Tavernier em francês é, literalmente, “Isso começa hoje”, e isso, evidentemente, é muitas coisas: a ação nefasta do neoliberalismo, o conflito do cidadão com o Estado em defesa dos mais fracos, os conflitos domésticos e sociais que envolvem os personagens, a tragédia anunciada. O sentido que gosto de propor para isso é a ação do espectador, aquilo que fará ao sair do cinema: pensar, discutir, escrever ao jornal, questionar o político. Para mim, isso deve mesmo começar ainda hoje.
É hoje que crianças e jovens dizem “eu quero minha biblioteca”, espaço de comprovada confiança da população conforme apontam dados, depoimentos. É hoje que pessoas aderem a movimentos que reivindicam o direito à leitura literária, é de hoje o tempo em que nos entregamos à tarefa premente de pensar, escrever e ler o país que queremos, o mundo que queremos.
2 https://pt.wikipedia.org/wiki/Analfabetismo_funcional Acesso em 25/03/2016.
3 RAMOS, Graciliano. Infância. 23. ed. Rio de Janeiro: Record, 1986. PP. 203.
4 LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 31.
5 VÓVIO, Claudia Lemos. Alfabetização funcional. In:
http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/alfabetizacao-funcional
Acesso em 25/03/2016.
6 IBGE. In: http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/pdfs/definicoes_sociais.pdf Acesso em 25/03/2016.
Verbete “pessoa alfabetizada”: 1. (Censo Demográfico) 1991 Pessoa capaz de ler e escrever pelo menos
um bilhete simples no idioma que conhece. 2. (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) 1976-1994
Pessoa de 5 anos e mais que sabe ler e escrever um recado ou bilhete simples no idioma que conhece.
1995-1999 Pessoa que sabe ler e escrever um recado ou bilhete simples no idioma que conhece,
inclusive a pessoa alfabetizada que se tornou física ou mentalmente incapacitada de ler ou escrever.
7 HÉBRARD, Jean. O autodidatismo exemplar. Como Valentin Jamerey-Duval aprendeu a ler. CHARTIER,Roger, dir. Práticas da leitura. Iniciativa Alain Paire. Trad. Cristiane Nascimento. Introd. Alcir Pécora. 2.ed. rev. 1 reimp. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.
8 SARTRE, Jean-Paul. As palavras. Trad. J. Guinsburg. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. p. 182.
9 GERSÃO, Teolinda. Os anjos. 2. Ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000. p. 42.
10 AÇÃO Educativa; INSTITUTO Paulo Montenegro. Hábitos e práticas de leitura à luz do INAF. São
Paulo: Congresso GIFE 2016.
11 HANSEN, João Adolfo Hansen. Reorientações no campo da leitura literária. In: ABREU, Márcia;
SCHAPOCHNIK, Nelson (org.). Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas, SP: Mercado das
Letras, Associação de Leitura do Brasil (ALB); São Paulo, SP: Fapesp, 2005. p. 13.
12 http://www.merriam-webster.com/thesaurus/literacyAcesso em 25/03/2016.
13 TAVERNIER, Bertrand, dir. Quando Tudo Começa / Ça Commence Aujourd'hui, França, 1999. Com Phillipe Torreton, Maria Pitarres, Nada Kaci e Françoise Bette. 105’, cor.
*Palestra proferida no 9º Congresso GIFE, Atividade Aberta da Rede Temática Leitura e Escrita de Qualidade para Todos: Políticas públicas de leitura à luz do Inaf 2015 (São Paulo, 30 de março de 2016)