“Sempre cultivei a ideia de leitura como direito e, reforçada pelos sucessivos anos de estudos, trabalho e vivência, de condição de base para a nossa constituição como seres humanos.” Confira a íntegra do artigo de Christine Castilho Fontelles para o Seminário Café com Leitura.
Leituras de mundo: 1 em 7 bilhões, minha vez, minha voz
Christine Castilho Fontelles*
“Vivemos para dizer quem somos”. Esta afirmação é do inigualável José Saramago registrada no livro “Amor Possível”, que reúne uma entrevista do jornalista e escritor Juan Arias com o autor. Acho que daí veio minha convicção de que escrevemos para anunciar quem somos. Escrevemos para partilhar, porque não damos conta de suportar sozinhas(os) amores e dores e espantos. Escrevemos para deixar o rastro de nós mesmas(os) neste lugar gigante que é a vida, que é a nossa vida neste planeta onde somamos, atualmente, 7 bilhões. Talvez a eternidade possível seja assim, como o rastro de poeira das estrelas impressa no cosmos, deixamos um rastro de memórias tecidas em palavras. Talvez seja assim, muito a contragosto, que transgredimos a dramática consciência da nossa fatal finitude. Mas é também neste rastro de palavras que resistimos: eu (e você), em meio a 7 bilhões, para anunciar nossa vez, nossa voz.
O útero da mãe é também o útero da construção da linguagem humana, que nos permitirá, ou não, nominar, partilhar e defender nossa leitura de mundo. E certamente é desnecessário aqui falar das tantas pesquisas da neurociência que confirmam o fato: nascemos leitoras(es) de ouvir para pouco a pouco nos tornamos leitoras(es) de ver, ler. Linguagem é ubiquidade. E então as pessoas se vão – a gente se vai – e herdamos seus rastros marcados por suas palavras. “Com poucos mas doutos livros juntos, vivo em conversação com os defuntos, e com os olhos ouço os mortos, é certo.” Escreveu o poeta espanhol Francisco de Quevedo no “Soneto desde a torre de Juan Abade”.
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Ler é verbo de construir pontes, encontrar semelhantes e semelhanças, descobrir e aprender a conviver com dessemelhantes e dessemelhanças, e acima disto, ou apesar disto, aprender que partilhamos uma humanidade comum, que a despeito de viver neste ou em outro lugar, neste ou em outro tempo, somos um mesmo fio da vida, capazes de maravilhas e atrocidades. “Eu e Surendra partilhávamos a mesma pátria: o Índico. E era como se naquele imenso mar se desenrolassem os fios da história, novelos antigos onde nossos sangues se haviam misturado. Eis a razão por que demorávamos na adoração do mar: estavam ali nossos comuns antepassados, flutuando sem fronteiras. Essa era a raiz daquela paixão de me encaseirar no estabelecimento de Surendra Valá. – Somos da igual raça, Kindzu: somos índicos!”, escreveu Mia Couto em “Terra Sonâmbula”, relatando o encontro de “dessemelhantes” que rompe fronteiras geográficas e culturais para desaguarem irmanados numa mesma perspectiva de mundo, contrariando as convenções locais: um africano e um indiano.
Nossa leitura de mundo é mediada pela palavra. A construção em si de sentido e de identidade só pode se realizar na medida mesma em que conseguimos expressá-las pela palavra. A palavra da qual fazemos uso para retratar a vida, apropriar e partilhar o sentido do vivido e do sonhado, sentir e expressar esperança, resistir e costurar humanidades, é resultado direto de oportunidades asseguradas por afeto e por direito. A inclusão e a exclusão passam pelo acesso democrático ou não à palavra: escrita, ouvida, lida, falada, pensada, projetada, imaginada, inventada, holográfica…
Outro dia ouvi Mia Couto dizer que após a tragédia ocorrida em Moçambique decidiu adiar a escrita do livro no qual fala de sua cidade natal, Beira: “De repente, tenho que repensar o romance que já comecei, e tenho um certo pudor em me aproveitar da circunstância dramática. Quando o sofrimento é tão intenso, eu acho que não tem cabimento meu papel como escritor”. A leitura de mundo do escritor Mia Couto é admirável e entendida quando ouvimos a narrativa da sua história vivida, que constituiu o Mia Couto que lemos, repleta de pequenos e intensos fragmentos de sua infância e ainda mais potente na memória preservada dessa infância. Aliás, fragmentos de pequeninas pedras brilhantes que ele e seu pai colhiam ao longo da estrada de ferro por onde circulavam vagões de minérios explorados na região. Essa vivência/memória teve lugar no tempo do Mia menino, conta ele, quando sua mãe, preocupada porque lhe parecia avoado demais e precisava aprender algo concreto, pediu ao pai que o levasse todos os dias à ferrovia, onde trabalhava, para lhe ensinar os ofícios do lugar. O pai poeta, disse Mia, o ensinou que há pequeninas coisas brilhantes na jornada.
Na entrevista que concedeu ao El País, conta que quando narra aos irmãos as suas memórias eles dizem que não aconteceu assim, que foi de outro jeito. Esta descoberta recente, narrada por um escritor, me marcou profundamente e reforçou a convicção de que, sim, partilhamos uma humanidade comum. Minha família viveu num conhecido bairro de imigrantes italianos em São Paulo antes de eu nascer, o Bexiga: um dos mais tradicionais bairros da cidade, que não existe oficialmente na divisão administrativa como tal. Sou a caçula de seis irmãos e sempre ouvi com ternura e saudade do que não vivi as histórias narradas pelo meu irmão Josué. E tamanha era essa saudade que um dia decidi que era chegada a hora de “ver” no detalhe as edificações do que não vivi, mas conhecia tão bem pelas histórias que dele ouvia desde a infância. Caminhamos pelas ruas e lugares de sua infância, tiramos fotos, e tudo ficou ainda mais real para mim. O curioso é que nossos irmãos têm a mesma reação dos irmãos de Mia Couto sempre que ouvem a narração de suas memórias, o que significa dizer que nossas leituras de mundo e as memórias que nos constituem são moldadas por camadas de argamassa de percepções estéticas e afetivas diferenciadas no encontro com o mesmo real, como diz Pessoa:
“O Universo não é ideia minha.
A minha ideia de Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
O real busca a ajuda do imaginário. Somos a única espécie que tem consciência e, bem dramático, consciência da nossa finitude. Esta consciência, que é um grande diferencial e resulta numa série de vantagens sobre as demais espécies e enorme benefício para nós mesmos do ponto de vista evolutivo, também apresenta uma conta alta a pagar. Quanta realidade somos capazes de suportar? Ítalo Calvino, elucubrando sobre ler literatura e ser no mundo escreve que “a literatura jamais teria existido se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a uma forte introversão, a um descontentamento com o mundo tal como ele é, a um esquecer-se das horas e dos dias fixando o olhar sobre a imobilidade das palavras mudas”.
“O homem é um animal que conta histórias”, escreve Ana Maria Machado no texto “Em louvor da narrativa”, que integra o livro “Ponto de Fuga”, baseada numa visão filosófica mas também de estudiosos do cérebro, como Steven Pinker, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), segue ela “o ser humano tem um cérebro biologicamente programado para o uso narrativo da linguagem, como a aranha é programada para tecer sua teia”.
Nossa leitura de mundo está pautada nas inúmeras experiências de vida na qual estamos imersos no miudinho dos nossos dias, iniciando com nossa gestação, os cuidados e/ou ausência deles na primeira infância, onde os três primeiros anos têm papel central, a jornada adolescente, a entrada na vida adulta, o ingresso e jornada na velhice. Banhados nessas experiências em nossa jornada de vida vamos nos constituindo como ilha ou como arquipélago, empátic@s ou empoleirad@s em visões de mundo onde cabe muito pouca gente ou ninguém, onde temos redes de contatos sem afeto ou gente amiga e querida onde tempo e distância têm o efeito de fortalecer e tecer transcendência. Assim como de uma vida mergulhada em palavras funcionárias emergem pessoas sem qualquer ou muito pouca condição de nominar o mundo com passadas que nos encaminhem ao que pode existir de melhor em nós, melhor por nós, por todas(os) nós.
Em quais experiências de vida e universo de palavras temos sido banhados? De quantas camadas de real e de imaginário se constitui cada qual dos 7 bilhões neste mundo? Tanto o acesso à vida digna e garantido pelo atendimento às necessidades básicas quanto à arte e à fruição e à possibilidade de apropriação da linguagem são marcados por profunda desigualdade. Para onde estamos nos levando?
Acredito não ser a única condômina deste planeta perseguida com a incômoda sensação de retrocessos sistemáticos. Segundo o psicólogo Yves de La Taille, vivemos numa “cultura da vaidade, em que o lugar do outro nunca é o de um parceiro. O outro é alguém que devemos superar”. O psicanalista Jurandir Freire afirma que: “Por natureza, o homem não é um ser social. Não existe nele, como nas abelhas e nas formigas, um instinto de preservação da espécie – apenas o de autopreservação. Somos por natureza narcísicos, porque só vemos, prioritariamente, nosso bem-estar individual. O convívio social e, mais ainda, o convívio social democrático nos impõem, portanto, um trabalho enorme”. Freire resgata Freud, segundo o qual “sem um ideal que caucione a vida social, o homem se torna um ente que viaja na escuridão”.
Tá parecendo que fazer vingar essa ideia de humanidade que cultivamos há tantos séculos requer muito mais de nós do que de fato acreditamos, e que a jornada rumo a ela não é um traçado reto, mas extremamente sinuoso e repleto de armadilhas, inconscientes ou planejadas, para caminharmos sem, de fato, sair do lugar. Caminhamos num campo de aparências completamente minado, apartados geográfica e afetiva e concretamente das reais condições de partilhar uma mesma ideia de mundo, íntegra e preservada para todas as vidas, em suas múltiplas e mesmo infinitas manifestações.
Entendo que não estou só quando digo ou escrevo que andamos em tempos de pouca empatia, acirramento de ódio e predisposição ao confronto. É como se uma vez mergulhados planetariamente num caldeirão multicultural, vivendo lado bom e lado conflitante desta convivência, nos déssemos conta de que, realmente e apesar desses séculos todos de exercício de uma humanidade comum, realmente precisamos de um SOS Bicho Homem: somos intolerantes e não conseguimos driblar nossa natureza (?) predatória de tudo o que não “é nós, como nós”?
Parece que somos bons de marketing e péssimos em efetividade. Em recente passagem pelo Brasil a ativista de direitos humanos Graça Machel disse que “a solidariedade tem de ir para muito mais além da emoção, tem de ser muito mais constante. Eu acho que nós temos que voltar a ganhar essa solidariedade de uma maneira muito mais constante”.
Há tragédias humanas e ambientais que causam comoção no momento mesmo de seu acontecimento e divulgação pelas mídias e pouco a pouco mergulham no esquecimento sem que tivéssemos ideia dos desdobramentos. Você sabe como estão e como vivem quem teve a vida pilhada pelo rompimento da barragem em Mariana (MG)? Como estão sendo cuidadas, onde e como estão vivendo, que futuros têm pela frente crianças, jovens e idosas(os)?
Que leituras de mundo estamos sendo realmente capazes de fazer e ao fazer quais impactos positivos estamos gerando, ao mínimo no sentido de “promover o máximo de bem e o mínimo de dano” como propõe a educadora Maria Betânia Ferreira? Estamos nos reescrevendo como seres humanos melhores neste planeta – e em outros, já que está bem em curso viagens espaciais com fins de ocupação num futuro bem próximo? O que estamos fazendo com o que temos acessado? Quais recursos estão sendo colocados à nossa disposição para tirar do molho nossa utopia de humanidade?
“A grande bênção de saber que não há para onde ir – não porque a Terra é limitada, mas porque somos todos inquilinos temporários da existência” , como aponta o rabino Nilton Bonder – autor do imperdível “A alma imoral” –, nos impõe a obrigatoriedade de colocar em prática aqui e agora uma educação que nos permita parar de viver o paradoxo de lutar pela paz, de tolerar, que é palavra que traz no útero a intolerância, mas saber viver em diálogo pela paz, pela justiça, pela garantia de direitos, pelo reconhecimento de que o que nos torna comum é a diversidade que habita em nós. Precisamos, como disse Gabriel Garcia Marquez, de “uma educação do berço à tumba, inconformada e reflexiva, que nos inspire um novo modo de pensar e nos incite a descobrir quem somos em uma sociedade que se queira mais a si mesma”.
A estrada dessa educação da qual precisamos passa por todos os lugares que deveriam nos educar – casa, rua, bairro, escola, bibliotecas, múltiplos lugares – passa muito pela oferta de “práticas de leitura de textos literários e de expressão cultural que instigam a indagação, a criatividade e o protagonismo. Assumindo que a leitura congrega a possibilidade de uma “experiência”, ela se torna um processo de autoconhecimento e de afirmação subjetiva: é experiência “aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece e, ao nos passar, nos forma e nos transforma””, como defende o professor Luiz Percival Leme de Britto, na minha opinião – mas não só a minha – uma das mentes mais vigorosas, vibrantes e inquietantes relacionada à construção de cultura de leitura e escrita de qualidade para todas(os).
“O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer”, escreveu Valter Hugo Mãe nas primeiras páginas de “A desumanização”, trecho que inspirou o autor e escrever e ilustrar o livro “O paraíso são os outros”. É uma ode à vida, ao amor como fonte de cura, uma irrefutável declaração de que somos e existimos na relação com alguém, na interação com o mundo, com suas maravilhas e bizarrices.
E precisamos com urgência, como diz Nilton Bonder, “promover nosso amadurecimento pessoal e coletivo. Um amadurecimento que sempre será um processo no qual teremos não só poderes, mas a responsabilidade de intervir. Vamos poder melhorar as condições de nossa civilização, mas mesmo assim teremos tempos de paz e tempos de guerra. Não necessariamente guerras em que a gente pegue avião e jogue bombas, mas guerras travadas dentro de nós mesmos. Seus armistícios serão celebrados pelo amadurecimento de não mais termos que recorrer a métodos infantis de posse, de controle e de triunfo, que hoje, como no passado, vemos tão presente na realidade”.
Sempre cultivei a ideia de leitura como direito e, reforçada pelos sucessivos anos de estudos, trabalho e vivência, de condição de base para a nossa constituição como seres humanos.
Linguagem e realidade são fios de uma mesma existência, a nossa. Fios que não estão nas mãos das Moiras, como na mitologia grega, mas nas nossas mãos, sociedade civil e poder público para assegurar que todas e todos tenham este direito plenamente assegurado, para assegurar que cada qual dos 7 bilhões neste planeta tenham sua vez e sua voz, e que sejam vozes convergentes para assegurar igualdade, justiça, cuidados e preservação da natureza da qual somos parte intrínseca desde a gênese, feitos do pó da explosão das estrelas.
“A literatura é,
não serve,
mas falta”.Nilma Lacerda