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Quais elementos que envolvem a escrita e reverberam nas composições poéticas da escritora angolana Ana Paula Tavares? Confira o artigo de Rosana Baú Rabello.


Territórios contemplados pela poesia*

*Por Rosana Baú Rabello, doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade de São Paulo, com ênfase em literaturas africanas escritas por mulheres e sua relação com a história. Atualmente, atua como professora de literatura e formadora do projeto Leitores Sem Fronteiras.

Poesia pode ser território habitado pelas tantas vozes que atravessam a experiência de quem a elabora, pelo contexto que a envolve e pelo alvorecer da palavra que se reinventa para aprofundar a expressão do que é. Esses são alguns dos elementos que envolvem a escrita e reverberam nas composições poéticas da escritora angolana Ana Paula Tavares. Ainda pouco conhecida no Brasil fora dos circuitos acadêmicos restritos aos estudos das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, sua poesia impressiona pela densidade articulada aos verbos e às imagens que simbolicamente podem fazer rebentar a angústia de opressão que tantas vezes pesa sobre a garganta, como é sensível nos versos do seguinte poema: 

Aquela mulher que rasga a noite
com seu canto de espera
não canta
Abre a boca
e solta os pássaros
que lhe povoam a garganta

Para além dessas imagens referenciadas, dos temas que evocam e da densidade poética com que são explicitadas as condições para a expressão ou para o silenciamento tantas vezes imposto às mulheres, a escrita de Ana Paula Tavares projeta ainda outros dados que vão adensando a sua composição. Não quero com isso, dizer que é poesia difícil, hermética, indecifrável, mas tem a complexidade que faz da palavra simples um pluriverso denso, daqueles nos quais se pode mergulhar muitas vezes e ter a impressão de que é possível imergir outras tantas. 

Nascida em 30 de outubro de 1952, na cidade de Lubango, no Planalto Central do país, a autora começa a revelar sua produção poética na década de 1980, depois de finda a Guerra de Libertação Angolana, que se estende de 1961 a 1975, em um país que, até então, ainda era colônia portuguesa cuja população autóctone era submetida à exploração colonialista e aos trabalhos forçados. Com um território vasto, uma história viva de tensões e uma multiplicidade de referências socioculturais, Angola transparece na poesia de Ana Paula Tavares por uma perspectiva particular e um olhar que, embora se apresente como bastante pessoal, nunca fala apenas de si nessa condição autocentrada que é tantas vezes característica da poesia  – expressão do sentimento de um eu-poético. 

Nesse sentido, o que a poetisa muitas vezes faz é traduzir algumas condições do olhar interessado principalmente na vida das mulheres de sociedades agropastoris, sendo este particularizado pela perspectiva de alguém cuja experiência é atravessada por outros universos. A autora se encontrava em um ambiente matizado por elementos e referências humbe, nhaneca, chokwe ou cuanhama, sendo esta última uma estrutura social agropastoril à qual pertencia sua avó paterna. Contudo, ao mesmo tempo, via esses tantos elementos à distância de uma educação portuguesa oferecida pela avó branca de Castelo, muito pobre, e que, segundo a própria autora, lhe deu outra fala. 

Essa outra fala conjuga o lugar de uma observação privilegiada e de uma sensibilidade forjada nesse contato que a autora estabelece com o universo de referências portuguesas e com as impressões significativamente colhidas entre os cuanhamas e entre outras estruturas sociais as quais se empenhou em conhecer. Por isso, muitos dos símbolos de que se vale sua poesia são destes universos de referências e tentam alinhavar percepções que aproximam e, ao mesmo tempo, excedem àquelas das pessoas situadas nessas comunidades, como é perceptível em “EXACTO LIMITE”, poema de seu primeiro livro, Ritos de Passagem, publicado em 1985:

 

EXATO LIMITE

A cerca do Eumbo estava aberta
Oktwandolo,
“a que solta gritos de alegria”
colocou o exacto limite:
árvore
cabana
a menina da frente
saíram todos para procurar o mel
enquanto o leite
(de crescido)
se semeava azedo
pelo chão
comi o boi
provei o sangue
fizeram-me a cabeleira
fecharam o cinto:
Madrugada
Porta
EXACTO LIMITE  

 

Há, no poema, algumas marcas que o situam em relação a uma expressão cultural específica, a qual simboliza ritos de preparação para o casamento de uma jovem. Assim, a voz e a perspectiva a partir das quais o ritual é apresentado são as da menina que recebe o cinto e a quem é imposto o “exacto limite”. Contudo, embora a voz do poema se fixe em relatar a experiência do rito de passagem, há marcas que permitem expandir a compreensão desse relato e explorar sentidos que tensionam os limites impostos a qualquer mulher. O contraste entre a cerca aberta e o espaço restrito do Eumbo – este pátio das casas – é uma dessas marcas. Assim, os obstáculos para que se vá para lá do cercado não são somente físicos, mas também simbólicos. Para além de outros, estes seriam responsáveis por extorquir submissões e impor limitações de movimento e ação às mulheres. 

Essa preocupação e olhar sensível à vida e aos desafios vivenciados pelas mulheres é perceptível ao longo da obra da autora, desde seu primeiro livro publicado. De toda forma, muito conectada à história de seu país, sua produção poética conjuga essa sensibilidade aos desafios que intersectam gênero, lugar social e condições históricas impostas pelas guerras civis que, depois da libertação do colonialismo, seguiram matizando o país de tensões até 2002. Não quero dizer, com isso, que há, na escrita da autora, a descrição de dados específicos dessas disputas internas dentro do território nacional, mas esse contexto de conflitos políticos ajuda a conduzir os tons que podem, por vezes, colorir os poemas com uma angústia desperta, como em “O LEITE”: 

Meu seio
secou do seu leite
na sétima lua
não posso molhar o chão
os monas
nem o capim.
A catana que deixaste sem fio
ficou viva nas minhas mãos
ganhou bainha
na pele do peito
do lado do coração (TAVARES, 2011, p. 142). 

 

Por outras vezes, há a expressão de uma esperança desconfiada, que pode ser marcada pela quietude, acompanhada do sobressalto ou alimentada por um otimismo associado à prudência, como expresso nos versos em tom de oração: 

Dá aos cansados repouso
Fecha-lhes os olhos de mansinho
Veste-os com os panos da origem
O trabalho ainda não acabou
A ferida grande ainda não acabou
A ferida grande ainda não sarou
Lava-lhes as outras feridas com a planta das folhas rentes
Mas não lhes dês o suco
É veneno do tempo antigo e das palavras
Aquele que não conhecemos.
Fá-los respirar por fim
Na esquina das pétalas
O ar azul
Das contas da terra (TAVARES, 2011, p. 170). 

Este último é um poema de Ex-votos, livro publicado em 2003, quando o período de guerra civil já tinha acabado, mas seguiam reverberando muitas das dissensões tão longa e profundamente vivenciadas em todo o território nacional.  Ocorre que a capacidade de identificar possibilidades de resistência, de reconhecimento e de enfrentamento das dificuldades é delineada a partir de pequenas iluminações as quais conseguem revelar o sagrado e a sua potência nos gestos mais singelos. No poema que segue, não por acaso, o gesto captado em um relance e consagrado ao altar da família é da avó: 

OTYOTO, O ALTAR DA FAMÍLIA
Cansada de voar pássaros
a boca do vento
a avó
cortou o pão e a mandioca (TAVARES, 2011, p. 180). 

Otyoto é lugar de sacrifícios em oferenda, é o altar particular do proprietário do Eumbo, é espaço sagrado em torno do qual os membros da família se reúnem no intuito de “reconciliarem-se com os espíritos dos antepassados e obterem sua proteção, a fim de terem sorte na vida”, como o refere o padre e pesquisador Carlos Estermann. É diante desse altar da família que, cansada do aéreo, etéreo e impalpável, a avó corta o pão e a mandioca cuja potência de alimentar também sustenta a dimensão do sagrado. 

Com força concentrada de expressão, a poesia capta esse lampejo do sagrado contido no gesto cotidiano tantas vezes repetido. A aproximação significativa entre a fluidez do vento, a mobilidade do pássaro, a evocação do altar e a concretude do gesto de dividir o alimento promove um efeito figural que imprime intensidade e revela interesse nos mais pequenos gestos tantas vezes desprezados, tidos como sem importância. Portanto, ao imprimir esse cuidado de atenção e esse olhar preciso sobre o sagrado cotidiano, há uma elevação dos movimentos dessa avó, de modo a reconhecer a graça que representam (sendo que graça pode ser considerada aqui nos seus sentidos de beleza, benção e benesse).   

Imagino que essas sejam linhas de força que perpassam o trabalho da autora e, a partir de imagens tão simples, permitem revelar uma profusão de signos, sentidos e orientações para sua leitura. Há muitas possibilidades de aproximação do universo proposto por Ana Paula Tavares e algumas delas podem se revelar pela percepção de um contexto que se mostra no corpo e na voz das mulheres; pelo erotismo como espaço de exercício da liberdade ou como contraponto a um controle imposto aos corpos; pelo desvelamento de múltiplas perspectivas sobre o ambiente da guerra, contando com a presença ativa de vozes femininas as quais perturbam a unidade pretensiosa dos discursos dominantes; pelo retorno à terra e ao corpo, não como paradigma para reforçar estereótipos da “mulher”, mas como ponto de localização e condição de partida para atuar no mundo; tentativa de ver a mulher, a partir do centro, buscando deslocar o falso universal e a centralidade masculina; plurivocidade inscrita na palavra poética, a qual reverbera determinações culturais, históricas, geográficas, étnicas e de gênero. 

São essas algumas das camadas que complexificam e convergem para a densidade representada nos poemas e nas crônicas da autora angolana publicados desde a década de 1980, sequencialmente com Ritos de Passagem (1985), O sangue da Bungavília (1998), O lago da Lua (1999), Dizes-me coisas amargas como frutos (2001), Ex-votos (2003), A cabeça de Salomé (2004), Manual para amantes desesperados (2007), Como veias finas na terra (2010) e Um rio preso nas mãos (2019), este último um livro de crônicas reunidas em uma edição realizada aqui no Brasil pela editora Kapulana. A poesia reunida também pode ser encontrada na edição brasileira Amargos como os frutos, feita em 2011 pela Pallas. 

Tanto na poesia quanto na prosa, o olhar atento à história, à perspectiva e aos múltiplos planos que envolvem a vida e a experiência das mulheres é enriquecido pela efluência de uma linguagem intensamente poética e pelos contornos de gênero articulados aos contextos, espaços e tensões que podem ser manifestas naquilo que se revela para além das transparências de uma linguagem aparentemente simples. Vale muito a experiência de leitura.